Se o turismo pode revitalizar as ilhas, também há quem tema as consequências de um recurso excessivo a esta solução, não apenas na identidade do lugar mas também na realidade envolvente, onde convivem outros problemas. Quem resistiu a trocar a sua ilha por habitação social depara-se agora com uma lei de arrendamento que permite ao senhorio aumentar substancialmente o valor até aí cobrado. Ainda assim, subsistem rendas muito baixas, incompatíveis com melhoramentos. Solução? Unir inquilinos e proprietários num objectivo comum: reabilitar e arrendar a preço acessível.

Daniela Alves Ribeiro, arquitecta, integra a associação Habita, que começou por desenvolver a sua actividade em Lisboa e chegou ao Porto em 2015. O colectivo nasceu com o objectivo de chamar a atenção para os problemas relacionados com a habitação na capital, muitos deles com origem em bairros criados em regime de auto-construção – como a Jamaika, na Amadora -, que já serviram de palco àquilo que Daniela descreve como “processos de expulsão extremamente violentos”, acentuados por tensões raciais.

No Porto, a Habita tem dado voz às consequências da especulação imobiliária. Daniela Alves Ribeiro recusa embarcar numa retórica de diabolização do turismo, “até porque em última análise todos nós somos turistas, todos gostamos de visitar, de viajar, e portanto é errado partir do pressuposto de que o turismo é uma coisa má.”

A existência de um empreendimento como o 99 Colored Socks também não é vista como um problema. O problema, alerta Daniela, “é quando nós começamos a ter isto massificado, e quando na porta ao lado se começa a pensar: ‘eu é que sou idiota porque não estou a rentabilizar isto como o meu vizinho’”.

Na visão de Daniela, esta monofuncionalidade pode levar à autofagia, porque “a lógica de visitar locais extremamente típicos” acaba por levar à substituição desses locais por empreendimentos turísticos, resultando no desaparecimento dessa vivência cuja preservação é preocupação central na filosofia do 99 Colored Socks. Este fenómeno de substituição não se circunscreve a habitações a dar lugar a Alojamento Local. O alerta de Daniela estende-se à pressão sobre o pequeno comércio, que vai perdendo para as grandes cadeias à medida que as rendas começam a ser incomportáveis.

Também Jorge Ricardo Pinto identifica aqui um risco de saturação: “Quando há um caso de sucesso, a tendência é replicar o sucesso até chegar ao ponto em que a lei da oferta e da procura deixa de funcionar. Uma [unidade] funciona, fazem-se duas ou três, até que se fazem 10 e chega-se à conclusão que foi demais, e depois pode criar-se um problema porque os turistas começam a ir embora e ficamos com as ilhas abandonadas outra vez”.

Quando o assunto é a possível perda de identidade destes locais em virtude do turismo, Jorge Ricardo Pinto prefere colocar a questão em perspectiva. A identidade das cidades está, para o investigador, em permanente construção. Até ao século XIX, as ilhas também não faziam parte da identidade portuense: “A gente que veio ocupar as ilhas, na sua larga maioria, nem era do Porto, era gente que vinha de fora e que veio à procura de uma oportunidade de vida”, lembra. O abandono a que muitas ilhas foram sendo votadas ao longo dos anos resultou numa herança degradada, que hoje começa a despertar o interesse dos agentes turísticos, algo que, para o investigador, não é necessariamente um processo de destruição mas mais uma mudança: “Seria mais ou menos como se no final do século XIX as pessoas dissessem: não façam mais ilhas porque está a fazer-se ilhas demais, e isto vai perder a identidade porque era uma cidade que não tinha ilhas”.

O processo de transformação dos lugares em virtude da mudança do contexto económico não é, de resto, exclusivo das ilhas ou sequer da zona oriental do Porto. Também a Foz era, até ao século XIX, uma zona piscatória pobre, que a partir dessa altura experiencia um processo de elitização alavancado pelo lazer e pela prática balnear. Começam a surgir jardins, chalés e casas para gente abastada. A diferença, para Jorge Ricardo Pinto, está no ritmo da mudança: se na Foz o processo foi sendo construído ao longo de 50 anos, a vaga turística repentina está a repercutir-se também de forma repentina no território.

O que, para o investigador, coloca realmente em risco a identidade da cidade é a perda de raízes, o que acontece quando edifícios de habitação e comércio são comprados por fundos de investimento imobiliário, sem que se saiba quem são realmente os investidores e qual a sua ligação ao lugar.

E como se equilibra a balança? Para Daniela Alves Ribeiro, a resposta está na regulação. O Alojamento Local beneficia de incentivos fiscais, ainda que atenuados de 2016 para 2017, e para além disso a burocracia associada ao registo de um edifício como Alojamento Local não é muita – o proprietário é obrigado a dirigir ao Presidente da Câmara Municipal uma “mera comunicação prévia”, através do Balcão Único Electrónico, que é automaticamente remetida ao Turismo de Portugal. Esta entidade, através do Registo Nacional de Alojamento Local, disponibiliza publicamente essa informação. A proliferação de Alojamento Local que daqui resulta deveria, na opinião de Daniela Alves Ribeiro, obrigar a Câmara Municipal a munir-se de capacidade de fiscalização, no sentido de evitar que haja edifícios reabilitados para funcionar como Alojamento Local sem que seja feita a correspondente alteração de uso. “Eu cheguei a ouvir representantes da Câmara a dizer que não havia problemas de turismo porque o número de licenças para habitação era cerca de 50, 60 por cento, e as de turismo eram ínfimas”, afirma Daniela, alertando que nesta contagem faltam edifícios licenciados como habitação que depois acabam por ser transformados para fins turísticos.

Para os proprietários, as contas são fáceis de fazer: uma semana no 99 Colored Socks pode custar, dependendo da época do ano, mais de 500 euros, cerca do dobro das rendas mensais mais caras praticadas nas ilhas vizinhas.

Todos querem a galinha dos ovos de ouro?

A chegada em força do turismo ao Porto pode ser vista como bóia de salvação para quem quer rentabilizar os seus imóveis, mas nem por isso se assume como solução única ou, sequer, desejada por todos. O Habitar Porto, um projecto iniciado no Bonfim, surge precisamente para procurar outro tipo de respostas.

A decisão do arquitecto espanhol Aitor Varea Oro de estudar o SAAL, para efeitos de doutoramento, trouxe-o ao Porto e à realidade das ilhas. Em 2015, um trabalho de campo leva-o a identificar mais de 400 edifícios devolutos – o correspondente a mais de duas mil casas -, surge a questão: o que fazer a seguir? A resposta foi a criação do programa Habitar, uma iniciativa da associação Relatos Quotidianos articulada com a Junta de Freguesia do Bonfim e coordenada por Aitor Varea Oro e pela educadora social Liliana Lopes. O interesse pelo projecto viria a ditar o seu alargamento à freguesia vizinha de Campanhã, tendo a rede de colaboração passado a incluir a Junta de Campanhã e a própria Câmara Municipal.

O “tesouro” das ilhas do Bonfim (os seus habitantes) está a ser ameaçado por um tubarão (especulador imobiliário), e por isso precisa de encontrar bóias (espaços de participação comunitária) para não naufragar.

A ideia é tentar conjugar os interesses dos proprietários com os interesses dos inquilinos – ou de quem simplesmente procura habitação condigna e não a encontra a preços acessíveis-, tirando partido do manancial de casas vazias. Com o Habitar, cria-se uma plataforma entre inquilinos e proprietários cujas condições financeiras nem sempre lhes permitam reabilitar os seus imóveis sem ajuda, ou que simplesmente não tenham acesso à informação necessária para por em marcha uma candidatura a incentivos à reabilitação.

O gabinete onde o Habitar funciona, na Junta do Bonfim, serve para informar os proprietários acerca dos apoios estatais disponíveis para a reabilitação, mas também acolhe “inquilinos que necessitem de alterações nas suas casas, pessoas que andam à procura de casa e não encontram e profissionais que andam à procura de oportunidades para trabalhar e não encontram”, resume Liliana Lopes. Para que o processo seja bem-sucedido, é preciso que haja uma vontade comum.

A educadora social exemplifica com uma situação real: uma inquilina de uma ilha quer construir uma casa de banho na sua habitação, mas não existe um fundo para apoiar uma intervenção deste tipo, já que o programa Reabilitar para Arrendar, do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), com o qual o Habitar trabalha, apenas cede fundos para reabilitar imóveis completos, e uma ilha corresponde a um imóvel. Partindo dessa realidade, o proprietário pode candidatar toda a ilha a um processo de reabilitação, e nesse passo não só se constrói a casa de banho da inquilina como se dá condições de habitabilidade aos seus vizinhos ou a quem esteja à procura de casa e possa ir para lá morar.

Para que a ideia se concretize, é necessário que todos os inquilinos aceitem o plano de intervencionar as suas casas e que o proprietário (ou proprietários, no caso de ilhas de propriedade partilhada) esteja de acordo com as condições impostas pelo IHRU para a concessão do empréstimo, que o obrigam a arrendar as habitações a preço controlado – são casas para habitar em regime permanente e não para fins turísticos.

No caso da moradora que queria construir uma casa de banho, foi possível por toda a gente de acordo. A par desta situação, há uma outra ilha a ser intervencionada no Bonfim ao abrigo deste programa. Em Campanhã, a vontade de uma proprietária de reabilitar a sua ilha e melhorar as condições de vida dos inquilinos foi o mote para o lançamento, por parte do Habitar e da Junta de Freguesia, do concurso de Arquitectura Pensar, Construir, Habitar. O objectivo é dar à proprietária da ilha várias opções para a recuperação do imóvel. A candidatura vencedora receberá um prémio de 4 mil euros e a possibilidade de desenvolver o projecto.

Nem todas as situações têm solução

A concretização de acções ao abrigo do Habitar exige, em primeiro plano, uma plataforma de entendimento entre inquilinos e proprietários, o que nem sempre acontece. O caso de Fernanda Pedro é disso exemplo.

Fernanda tem 62 anos, 60 passados na Rua de São Victor. Quando se deu o 25 de Abril já tinha dois filhos e vivia na casa da mãe. A dimensão exígua da casa obrigava-a a dormir no chão com as crianças.

No calor do pós-revolução, e à semelhança do que fizeram outras famílias, um dia Fernanda pegou nos filhos e foi ocupar uma casa desabitada noutra ilha da rua. Após 10 meses de ocupação de uma casa devoluta mas com proprietário, entregou 24 contos ao senhorio.

Ao longo dos anos, foi investindo em pequenas melhorias (a sua habitação é a única da ilha com casa de banho). Os 25 euros mensais de renda fazem-na encarar com naturalidade o facto de as intervenções sempre terem saído do seu bolso: “As pessoas querem pagar 50 euros e querem que o senhorio gaste dois mil no telhado… não pode ser”.

No entanto, para efeitos legais, o domicílio que Fernanda registou foi o da mãe, e não aquele onde realmente vive. Agora, a proprietária decidiu fazer obras e Fernanda, que desconhece o destino a dar à ilha após a renovação mas recusa pagar uma renda substancialmente mais elevada, recebeu ordem de despejo.

No fundo, Fernanda investiu numa habitação que, na realidade, nunca foi sua, o que a deixou à mercê da sensibilidade da proprietária. Ao mesmo tempo, a casa de que é legítima arrendatária foi-se degradando. Face a esta situação, Fernanda entrou com um pedido de habitação social mas está em lista de espera. Como sabe que estes processos demoram anos, vai procurando outras soluções.

A casa que Fernanda Pedro tem de deixar é uma das três ainda habitadas naquela ilha. Alda, a vizinha do lado, vive ali há 40 anos e também já foi informada pela proprietária da intenção de intervencionar a ilha, embora não lhe tenha sido comunicada nenhuma alteração à renda de 35 euros que actualmente paga. No entanto, a incerteza paira.

Atira Fernanda: “Quando ela fizer as obras tens de meter na cabeça que isto não vai ficar barato. Vai ficar muito caro. Achas bem pagar 300 ou 400 euros? Vais ficar se ela pedir esse dinheiro?”

Retorque Alda: “Para onde é que eu vou?”

“Vais para uma casa da Câmara”, soluciona Fernanda. Mas não convence a vizinha, que duvida que numa lista de espera onde se contam famílias com crianças haja lugar para si.

O que Alda e Fernanda parecem desconhecer é que esta é uma das ilhas a beneficiar de uma intervenção ao abrigo do Habitar, apesar de isso já lhes ter sido comunicado aquando desta conversa. Mas já iremos aos problemas de comunicação.

Para o leitor que possa estranhar o aumento exponencial do valor da renda “adivinhado” por esta inquilina, importa lembrar que o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado em 2012 e novamente actualizado em 2017, passou a permitir aumentos de renda desta natureza. Aliás, para Daniela Alves Ribeiro, foi precisamente esta alteração legislativa que “permitiu que as pessoas ficassem expostas a factores concorrenciais, como o turismo.”

Também nesta matéria Jorge Ricardo Pinto olha para os dois lados da questão, até porque a experiência pessoal a isso ajuda. O investigador passou a infância em ilhas, no seio de uma família composta por proprietários, de um lado, e inquilinos, do outro.

“Colocando-me do ponto de vista do proprietário, a situação também era muito difícil porque ganhavam muito pouco”, sublinha. Esta circunstância gerava depois alguma tensão, porque se havia inquilinos a imputar ao proprietário a responsabilidade por melhoramentos, logo havia senhorios a escudar-se nas parcas rendas para recusar esse encargo. 

Há senhorios e senhorios, há inquilinos e inquilinos

Se para Alda e Fernanda o futuro é uma incógnita, basta atravessarmos a rua para nos depararmos com outra realidade. A ilha onde Generosa Firmino vive há 78 anos está completamente habitada, e as casas apresentam boas condições.

Generosa mostra com orgulho a casa onde vive com a filha, Anabela, e pela qual paga uma renda de 85 euros mensais. Aos poucos, foi fazendo obras, e neste momento tem um piso térreo com cozinha, casa de banho, sala e quarto e um piso superior com outro quarto. No último verão, a casa foi pintada e teve portas novas.

Generosa optou por fazer obras por sua conta mas alguns dos seus vizinhos viram as habitações intervencionadas por iniciativa do próprio senhorio, tendo passado a desembolsar um pouco mais com a renda. “Este senhorio está a fazer o mesmo que o pai já tinha feito: a recuperar as casas. As pessoas que pagavam 30 ou 40 euros têm de pagar mais porque isto é um investimento”, justifica Fernanda Pedro, enquanto guia o Faktual nesta visita.

“Se há senhorios bons, este é um espectáculo”, remata Generosa. A filha, Anabela, sabe que a Lei do Arrendamento não lhe vai permitir celebrar um contrato tão vantajoso, mas não se importa: “Se um dia a minha mãe fechar os olhos sei perfeitamente que não vou pagar 85 euros. Pago 200, 300, 400, 500, mas não saio desta casa. Esta casa é minha até morrer! Só se ele vendesse a ilha, aí que remédio eu tenho senão sair”.

O sentimento enraizado de pertença que Generosa e Anabela exibem encontra paralelo em José Castelo, que viveu durante 40 anos na “Ilha do Doutor” – as ilhas são conhecidas por designações informais com origens diversas, que podem ir do nome da família preponderante, que ocupa várias casas, a uma característica, como no caso da “Ilha Grande”, assim conhecida por ser a maior da rua.

Apesar de já há mais de 20 anos ter assentado arraiais noutra zona da cidade, todos os dias José regressa à ilha onde a irmã, Lurdes, ainda vive. Aqui, mostra-nos o pátio onde anualmente é colocada a cascata de São João – algo semelhante a um presépio mas alusivo aos Santos Populares, com enfoque, claro está, naquele que o Porto celebra a 24 de Junho -, adornado com desenhos que retratam a festividade popular, feitos pelos seus netos.

“Está tudo tão parado”, lamenta Rosa Jesus, 43 anos na Rua de São Victor. A moradora ainda se lembra do bulício antes do êxodo para os bairros sociais, e agora é ela própria a querer ir para um deles, ou então para uma casa na frente da ilha, onde possa testemunhar o movimento que ainda resta: “Estou cheia de morar aqui porque moro lá ao fundo, quero ver as pessoas e não vejo nada”.

Também Rosa, que paga 22 euros de renda, intervencionou a sua casa: “Fiz casa de banho, cozinha, tudo. O senhorio não faz nada, nem vai ao telhado. Pus vigas na minha casa e tudo, que estava tudo a cair”. A reclamação é logo seguida de condescendência: “O senhorio não faz obras mas também nunca lhe pedi”.

A vizinha, Maria Teresa, mostra plena compreensão para com o outro lado: “É preciso ver que nós estamos a pagar uma miséria, não vamos estar a exigir do senhorio que faça isto e aquilo”. No caso de Maria Teresa, que já acrescentou dois quartos à sua casa, a “miséria” são 10 euros mensais. “Se gostamos de viver numa casa em condições temos de fazer”, sentencia. Mais resignada do que a vizinha, Maria Teresa prefere continuar onde está: “Agora já não queria ir [para os bairros sociais]. Tenho uma rica casa”.

Não obstante, há quem pague mais e não tenha casas melhores – basta ter um contrato celebrado depois da entrada em vigor do NRAU, em 2012.

“Se tivermos alguém que está a viver desde há muito tempo numa habitação, e cujo período de transição para o novo código de arrendamento ainda não tenha passado, pode estar a pagar sete, 14, 25 euros. Se os contratos de arrendamento tiverem cessado e os novos venham a ser celebrados sob o novo regime, podem ter outro valor de renda”, clarifica Liliana Lopes. Reconhece que as condições de habitabilidade nem sempre acompanham a alteração legal: “Já há casas nas ilhas que apresentam condições muito superiores às de origem. Mas também é verdade que continua a haver casas com condições bastante degradadas e que ainda assim podem atingir valores de renda superiores aos 200 euros”.

José Castelo confirma o diagnóstico: “Na minha ilha, a minha irmã ainda paga sessenta e tal euros de renda mas há lá pessoas a pagar acima de 200 euros e nem por isso têm casas melhoradas.”

Qual o futuro da memória das ilhas e das suas gentes?

Ricas ou pobres, estas casas albergam um património histórico que foi passando de geração em geração, e cuja preservação é incerta. Além do 99 Colored Socks, uma outra ilha da Rua de São Victor foi já convertida em Alojamento Local, e a ideia parece de facto ganhar raízes: “Os funcionários das imobiliárias andam aqui quase todos os dias a perguntar se é para vender”, assegura José Castelo.

Liliana Lopes, a quem o Habitar deu um conhecimento abrangente da zona, não identifica situações de pressão efectiva para que os moradores deixem as suas casas, mas descreve a existência de “pressões subtis”, traduzidas em obras que não se fazem e condições de degradação que se deixam extremar, sob a premissa de que se o inquilino já não está satisfeito, o senhorio também não é obrigado a fazer nada. “Isso é tido como uma pressão para sair porque os senhorios querem dispor do imóvel, seja para vender integralmente a um investidor ou para ser investidor em causa própria e converter o imóvel em outros usos, designadamente arrendamento a estudantes ou turistas”. De resto, as faixas das agências imobiliárias vão povoando a zona.

As pessoas falam sobre estas questões entre elas, no café, e entre vizinhos, mas depois não se mobilizam para desenvolver acções concretas

A Liliana Lopes também não são alheias as dificuldades de muitos proprietários de ilhas, que têm casas vazias e rendas antigas provenientes das poucas que ainda estão ocupadas, estabelecidas ao abrigo de contratos celebrados antes das alterações legislativas de 2012.

Nestes casos, Liliana sabe que os encargos com os imóveis são muitas vezes superiores aos proveitos, por isso não censura os proprietários que decidem aproveitar a oportunidade de rentabilização que os novos investidores podem oferecer. No entanto, frisa, há também quem não tenha “prazer nenhum em estar ali a forçar processos de desalojamento dos inquilinos” e que se preocupa em garantir que as suas casas ficam entregues a quem as estime.

Também para Daniela Alves Ribeiro, a melhor solução para responder a estes problemas é aquela que o Habitar oferece, porque permite “fixar as pessoas nos sítios com os quais elas se identificam e melhorar as condições de habitabilidade, que no fundo é o grande drama das ilhas do Porto”.

Por outro lado, o projecto tem a capacidade de trazer pessoas que possam continuar estes laços relacionais, ao garantir-lhes habitação digna a preço acessível.

Na visão de Jorge Ricardo Pinto, há várias formas de encarar a situação: podemos assumir que a chegada do turismo vai destruir a estabilidade das comunidades ou podemos encarar isso como um processo natural de mudança, impulsionado pelo mercado livre: “Não pode haver a ilusão de que todos vão ficar bem e de que o território será igual daqui por 10 anos porque não vai ser.

A economia produz alterações no território e isso é inevitável”, sentencia. O investigador distingue, no entanto, duas situações: uma coisa é pegar num edifício abandonado e transformá-lo em alojamento turístico, outra é forçar processos de desalojamento: “Aí já não estou preocupado com a identidade ou com a autenticidade, mas estou preocupado com o bem-estar das pessoas e com uma certa legitimidade que têm àquele lugar”.

Foi precisamente para garantir a continuidade do património humano e habitacional que surgiu o projecto Retratos das Ilhas, uma iniciativa da rede Inducar financiada pela Fundação Calouste Gulbenkian através do programa PARTIS (Práticas Artísticas para a Inclusão Social). O ponto de partida foi o estudo de Isabel Breda Vásquez e Paulo Conceição e a ideia, manifestada no prefácio dos autarcas, de chamar as instituições a apresentar iniciativas que pudessem ser trabalhadas com as comunidades.

Com o Retratos das Ilhas, esse trabalho apresenta-se sob duas vertentes: expressão artística, consubstanciada em teatro e fotografia, e incentivo à participação cívica. Geograficamente, o projecto estendeu-se a três áreas da freguesia do Bonfim: Rua de São Victor, Travessa da Lomba e Travessa da Póvoa.

Em cada uma destas áreas trabalhou-se, junto da população, as questões mais prementes: se na Travessa da Lomba a regeneração urbana está na ordem do dia, em São Victor são as pressões sobre a habitação a marcar o ritmo. “Com São Victor, a ideia seria trabalharmos à volta destas questões do turismo e da gentrificação, porque é a zona mais próxima do centro da cidade e que já é mais visitada e mais solicitada pelos turistas”, explica Patrícia Costa, coordenadora do projecto.

Para chegar à comunidade de São Victor, o Retratos das Ilhas contou com a experiência que o Habitar já tinha no terreno – e para isso contribuiu o facto de Liliana Lopes, a par de Patrícia, também estar ligada à Rede Inducar.

A partir daí, teve início um trabalho de mobilização que envolveu, entre outros parceiros, o colectivo Left Hand Rotation, que desde 2010 tem vindo a trabalhar, em diversas cidades europeias, o tema da gentrificação. Ou seja, o processo de transformação urbana que obriga os moradores de zonas deterioradas a deixar as suas habitações, sendo substituídos por outros com maior poder de compra, em resultado de programas de requalificação de espaços estratégicos.

No Porto, o projecto materializou-se num workshop, realizado em Abril, cujos resultados saíram à rua e ficaram registados em vídeo. Num paralelismo com as ilhas que albergam tesouros resultantes de naufrágios, os materiais produzidos no workshop consubstanciaram essa analogia: o “tesouro” das ilhas do Bonfim (os seus habitantes) está a ser ameaçado por um tubarão (especulador imobiliário), e por isso precisa de encontrar bóias (espaços de participação comunitária) para não naufragar.

E são precisamente estas bóias que precisam de ser insufladas. A necessidade de vir para a rua mostrar o trabalho desenvolvido nasceu da fraca adesão ao workshop, que reflecte uma falta de mobilização mais generalizada: “As pessoas falam sobre estas questões entre elas, no café, e entre vizinhos, mas depois não se mobilizam para desenvolver acções concretas. O nosso objectivo é também incentivá-las a criar e pensar em conjunto sobre isto”, resume Patrícia Costa.

A expressão artística, concretizada no teatro e na fotografia, é mais uma forma de pôr as pessoas a pensar em conjunto. A peça CAL, estreada em Setembro, foi o culminar de um projecto de teatro comunitário desenvolvido em parceria com a PELE – Espaço de Contacto Social e Cultural. O espectáculo representa as ilhas como “paredes vivas”, com histórias e gente dentro, sem guião imposto. Apesar de existir uma direcção artística, o espectáculo é feito a partir daquilo que as pessoas dizem e da forma como manifestam as suas memórias.

Apesar de ter terminado no final de 2017, Patrícia Costa espera que este projecto, pequeno no tempo e nos recursos, seja a porta para a criação de novas dinâmicas: “Se as pessoas ficarem mais atentas, com mais capacidade de argumentar, já é um resultado bastante positivo para o projecto”.

“Isso é com o senhorio, não é com os inquilinos”

A capacidade de argumentar esbarra muitas vezes na resignação e na dificuldade de comunicação. A Caravana pelo Direito à Habitação, uma iniciativa itinerante que juntou moradores e diversas entidades – entre elas a Habita – para dar voz aos problemas da habitação em todo o país e, a partir daí, apresentar propostas às entidades governamentais, apeou-se no Porto em Setembro. A passagem pela zona oriental incluiu um périplo por Campanhã, freguesia assolada por situações de extrema pobreza e exclusão social, e uma paragem na rua de São Victor para um debate que contou com a presença de Daniela Alves Ribeiro e Patrícia Costa. Mais do que propostas, ouviram-se dos moradores desabafos e demonstrações de resignação: “Se o senhorio fizer de duas casas uma, a pessoa tem de pagar mais renda. Nunca há solução para nada!”, atira uma moradora.

Quando Daniela lembra que a maior parte das pessoas prefere permanecer nas ilhas, com melhores condições de habitabilidade – o que poderia passar por remodelar a ilha, fazendo cinco casas onde inicialmente havia 10, a resposta não tarda: “Mas ninguém obriga o senhorio a fazer isso.”

O novo modelo proposto pelo Habitar não parece, ainda, ser uma realidade conhecida por estes moradores, até porque a premissa em que assenta – diálogo entre inquilinos e proprietários – é algo que estas pessoas encaram como uma possibilidade longínqua. Talvez por isso ajude também a perceber por que razão Alda e Fernanda ainda duvidam de um futuro com uma renda acessível.

A rua que despertou no sogro de Filipe Arouca a vontade de criar raízes é hoje uma espécie de laboratório onde um projecto turístico convive com um programa que procura gerar as bases para criar habitação permanente a preço acessível, servindo ao mesmo tempo de palco para a reactivação de espaços de participação comunitária que tendem a desaparecer com a dispersão da população.

O tempo dirá se esta harmonização é o caminho para preservar o património habitacional e comunitário das ilhas ou se a transformação destes locais é, afinal, inevitável e consequência das mudanças económicas e demográficas da cidade.