Construídas para receber os operários pobres que chegavam em torrente durante a Revolução Industrial, as ilhas do Porto sofreram um processo de transformação ao longo dos anos. Depois de anos de abandono progressivo, a chegada em massa do turismo ao Porto abre caminho a uma nova realidade.
O estudo de 2015 “Ilhas do Porto – Levantamento e Caracterização”, coordenado por Isabel Breda Vázquez e Paulo Conceição, identifica a existência de 957 ilhas em toda a cidade do Porto, habitadas por mais de 10 mil pessoas.
No prefácio do documento, assinado pelo Presidente da Câmara Municipal, Rui Moreira, e pelo então Vereador da Habitação, Manuel Pizarro, o município assume o desígnio de olhar para as ilhas de forma mais incisiva: “O esforço de requalificação e regeneração urbana da cidade deve, evidentemente, chegar às ilhas”, lê-se. Encarando o estudo como um “ponto de partida de conhecimento que vai permitir ao Município organizar um programa de requalificação das ilhas do Porto”, os autarcas reconhecem que esse não pode ser um objectivo isolado da autarquia, apelando à mobilização da cidade.
Importa recordar que a esmagadora maioria das ilhas do Porto é de propriedade privada. A Câmara Municipal detém apenas três ilhas, estando uma reabilitada e as outras duas com projectos de reabilitação em curso, como referiu Rui Moreira numa recente Comissão Parlamentar. O Faktual tentou ouvir o actual Vereador da Habitação mas tal não foi possível.
De origem anterior à industrialização, mas alavancadas por este fenómeno, as ilhas são fileiras de casas construídas de modo a aproveitar os lotes compridos do Porto, uma resposta barata e insalubre ao aumento da procura de habitação por parte da classe operária – entre 1864 e 1900, o Porto duplicou a sua população.
A origem dos proprietários variava: se alguns, pequeno-burgueses, viam nesta explosão demográfica uma oportunidade para rentabilizar os seus logradouros, outros, pequenos comerciantes com alguns terrenos, aproveitavam para construir nesses lotes. Jorge Ricardo Pinto, investigador, geógrafo e autor do livro “O Porto Oriental no Final do Século XIX”, explica o surgimento das ilhas do Porto como o aproveitamento de uma oportunidade de negócio.
Os proprietários não eram, tradicionalmente, as pessoas mais abastadas da cidade, já que “a burguesia elitista não queria misturas, portanto evita ter ilhas nas traseiras”, clarifica Jorge Ricardo Pinto, que também redigiu a introdução ao estudo de Isabel Breda Vázquez e Paulo Conceição. Não se pense, no entanto, que o investimento imobiliário gerava grandes lucros.
Sem sair da Rua de São Victor, encontramos outra realidade: a de uma população envelhecida e com parcos rendimentos
Morfologicamente, na designação de “ilha” cabe um modelo maleável e difícil de engavetar: “A questão das ilhas é que muitas vezes nós queremos criar um modelo e não existe propriamente”, alerta o investigador. Embora o corredor com casas de ambos os lados seja a regra, o número de habitações é variável, e pode haver ilhas com dois acessos, um em cada extremidade do corredor.
Já as parcas condições de vida eram denominador comum: as casas eram construídas com materiais de fraca qualidade que favoreciam as infiltrações, e o clima húmido do Porto fazia o resto. Não havia obrigatoriedade de criar redes de esgotos, instalações eléctricas, ventilação ou água corrente, e a casa de banho ficava ao fundo do quintal ou a meio do corredor de casas, sendo partilhada por todas as famílias. As doenças e focos infecciosos proliferavam neste ambiente insalubre, onde famílias inteiras habitavam um aglomerado de casas de dimensões muito reduzidas.
Embora a designação de ilha esteja intrinsecamente associada ao Porto, também Lisboa conheceu uma solução habitacional similar, criada para dar resposta ao mesmo tipo de necessidade: os “pátios”, assim chamados porque na capital o quarteirão permitia um alargamento, criando espaço para o pátio à volta do qual se construíam as pequenas habitações, em lugar do corredor portuense.
Se ao nível morfológico havia diferenças, socialmente o objectivo era o mesmo, ou seja, “esconder uma classe baixa fora dos espaços de circulação, que passa a funcionar quase como as traseiras da cidade”, resume Jorge Ricardo Pinto. Em Inglaterra, a morfologia era idêntica à do Porto: as back to back houses, comuns em Leeds e Liverpool, eram fileiras de pequenas casas construídas ao longo de lotes compridos para albergar os operários recém-chegados.
Da diabolização ao romantismo
No final do século XIX, o higienista Ricardo Jorge descrevia as ilhas do Porto como um cenário desolador, recorrendo a termos como “antro de imundície”. As doenças do foro respiratório e a tuberculose eram comuns, criando-se inclusivamente condições para o ressurgimento da peste bubónica – o Porto foi a última cidade europeia a erradicar a doença.
As degradantes condições de vida atiçavam a revolta social, sobretudo se tivermos em conta que o contexto laboral era também fortemente penalizador. As greves começam a aparecer na década de 80 do século XIX.
Por vezes, nem as fronteiras entre a habitação e a fábrica eram claras: Jorge Ricardo Pinto lembra, na sua introdução ao estudo sobre as ilhas do Porto, que havia industriais a colocar os teares em casa dos operários como forma de fugir à fiscalidade, o que obrigava a reinventar espaço onde este era já praticamente inexistente. A vantagem, se assim se pode chamar, é que os capatazes passavam a ser uma realidade distante…
O relato do higienista Ricardo Jorge foi o ponto de partida para uma era de combate às ilhas, que teve início na Primeira República e prosseguiu durante o Estado Novo, com o Plano de Melhoramentos da década de 1956-66, que deslocou para a periferia cerca de um quinto dos moradores das ilhas.
Para Jorge Ricardo Pinto, a mudança de paradigma dá-se na década de 60/70. Para isso terá contribuído o Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), um projecto de arquitectura participativa que vigorou entre 1974 e 1976. O objectivo era apoiar a população alojada em habitação precária, envolvendo-a na procura de melhores soluções.
As “brigadas técnicas” constituídas ao abrigo do projecto, lideradas por arquitectos com o apoio dos moradores, encarregavam-se do levantamento das condições de vida, do apoio às comissões de moradores, do projecto arquitectónico e até do acompanhamento dos processos de expropriação.
Como refere o documento da Fundação Serralves com o título “O Processo SAAL”, o objectivo era projectar com os moradores e não para eles. No Porto, grande parte das intervenções teve lugar nas ilhas. Foi um período de forte mobilização populacional, alavancado pela esperança dos moradores em conseguir melhores condições de vida.
Jorge Ricardo Pinto explica, de resto, que o urbanismo participativo era algo já em voga na Europa, com o SAAL a constituir-se na “versão portuguesa daquele movimento”. “Eu penso que aí começa a perceber-se uma sensibilidade diferente em relação à ilha”, remata o investigador.
A transformação: de alojamento precário a alojamento local
“O meu sogro andava por aqui a passear e descobriu esta pérola”. É assim que Filipe Arouca, gerente do 99 Colored Socks, alojamento turístico da rua de São Victor, no Porto, descreve a génese do seu negócio.
O número 99 é uma das muitas ilhas a povoar aquela artéria da freguesia do Bonfim, de localização central, próxima do Coliseu do Porto e do Teatro Nacional de São João, e com vista para o rio Douro do lado dos números ímpares.
O imóvel não estava em situação de total abandono, mas tinha apenas uma moradora. Para compatibilizar todos os interesses, antigo e novo proprietário juntaram-se de modo a solucionar a situação da habitante, que foi realojada numa outra ilha da mesma rua, tendo inclusivamente ficado a trabalhar como governanta do novo empreendimento.
Filipe Arouca insiste na importância desta ligação à comunidade: “o serralheiro que temos aqui a trabalhar é da rua, o carpinteiro também. Temos um acordo de parque com uma garagem daqui e com a padaria em frente, que nos traz todos os dias o pão fresco para os clientes. A ideia passa por envolver toda a Rua de São Victor neste projecto, porque este foi o sítio onde [os moradores] nasceram”.
Além de envolver a comunidade, Filipe Arouca acredita na importância de passar essa vivência aos turistas, conservando o espólio da ilha – que vai da figueira onde os hóspedes podem colher os seus figos à pedra secular propositadamente preservada.
O nome escolhido para o empreendimento é o corolário desta ideia – a imagem característica (das ilhas mas também da Ribeira) dos estendais de roupa a secar serviu de inspiração para o nome “Colored Socks”, ideia plasmada num estendal onde se podem contar 99 meias coloridas permanentemente estendidas. Filipe Arouca acredita que a criação destas redes foi determinante para que o projecto fosse “muito bem recebido” na comunidade.
Pão quente, todos os dias na ilha
A ideia é corroborada pela proprietária do Café São Victor, Maria José, que fornece o pão ao 99 Colored Socks. A comerciante recorda que o sogro de Filipe Arouca foi, desde logo, uma pessoa “muito bem aceite”. Maria José reconhece que, apesar de os turistas não se deterem no seu estabelecimento (“tomam lá o pequeno-almoço e depois o dia é para passear. Aqui pouco ou nada têm que ver, têm é para o centro”), o 99 Colored Socks trouxe mais movimento à rua, além de contribuir para alavancar o seu negócio: “Há dias melhores, há dias piores, mas se eles tiverem sucesso nós também temos”.
Não se pense, no entanto, que o turismo é panaceia para todos os males. Sem sair da Rua de São Victor, encontramos outra realidade: a de uma população envelhecida e com parcos rendimentos que vê as suas redes de vizinhança dissolverem-se e as rendas a aumentarem. E também aqui há quem esteja a tentar mudar as coisas. [Será possível repovoar as ilhas a custo controlado?]