Nos dias que correm, num panorama em que “se descobriu” que o conteúdo é a melhor “ferramenta” de uma estratégia de marketing, tem existido alguma discussão (e confusão) entre conteúdo e notícias. Os dois são assumidos como sendo exatamente a mesma coisa. Não são, e há muitas diferenças entre eles. Uma notícia pode ser considerado conteúdo mas conteúdo não é propriamente notícia. E, como derivado, uma notícia é composta por conteúdo selecionado de acordo com critérios editoriais, jornalísticos. Notícia é diferente de conteúdo.

Já abordei este tema no blogue Novos Media, mas creio que se impõe marcar a discussão, principalmente depois das questões levantadas em algumas sessões do congresso dos jornalistas que decorreu de 12 a 15 de janeiro, no cinema São Jorge.

Quando se fala de digital, de internet, é crucial esta separação entre notícias e conteúdo. Com a massificação da internet, das redes sociais, da partilha viral, o termo conteúdo começou a dominar o mundo dos media, da comunicação, do marketing. Evoluiu mais depressa do que o jornalismo, sem capacidade de se adequar e fazer frente à euforia do consumo e da usurpação do seu produto permitida pela internet, pelas redes sociais.

Ao deixar-se enredar por este frenesim, os meios de comunicação social começaram, eles próprios, a dar relevância àquilo que se passa nas redes sociais. Ajudaram-nas a crescer, ficaram cegos pela velocidade e não tiveram capacidade de prever o futuro. O presente!

Os leitores são, pegando na ideia da história, os heróis, mas também os vilões. Ao recusarem pagar para ler notícias, aceitam tudo o que lhes entra pelas redes sociais.

Os jornais, as televisões, os jornalistas, transformaram em notícia o conteúdo dos cidadãos, muitas vezes em detrimento das notícias produzidas pelos próprios jornalistas. Apareceu a expressão “jornalismo do cidadão”, que, enquanto profissional, recuso, sempre recusei e irei recusar. Tal como recuso a existência da medicina ou arquitectura popular, apenas para dar dois exemplos.

Em qualquer uma das áreas há quem considere que tem valências para as praticar, e até conseguem colocá-las em prática, mas nunca se podem substituir aos profissionais treinados e com qualidade específica para os realizar. Nem os jornais e jornalistas devem divulgar esse conteúdo sem o tratamento devido.

Vamos ver uma coisa. Eu, por exemplo, sou capaz de erguer uma parede, de assentar chão, colocar azulejos, de aplicar um lambri, papel de parede ou pladur. Mas faço-o por gosto, aplico-o em coisas pessoais, e nem me passa pela cabeça, pelo menos sem me formar e adquirir experiência nessa área, assumir-me como profissional e oferecer os meus serviços ao público. (Leia-se que não existe um curso superior para ladrilhador, há engenharias e arquiteturas, mas um período de aprendizagem mais aprofundado com alguém que já o faça, adoptando algumas regras, é essencial para poder assumir a responsabilidade).

Voltando ao conteúdo, podem surgir questões como: “não são válidos os vídeos que um cidadão coloca sobre neve, ou cheias na internet? Ou sobre os atentados de Nice? Ou a tomada de posse de Donald Trump?”

São, com o devido filtro feito pelas redações, pelos jornalistas, e com limites. E, claro está, convém evitar as situações como a que levou um jornal a publicar uma foto de um suposto furacão na margem sul do Tejo. Afinal, a foto era uma montagem, feita por um internauta, e nunca foi verdade.

Ou, como sucedeu com o “atentado” de Nice, onde além de faltar o tal filtro editorial, colocou-se a nu o estado da profissão a nível global. Ou a imagem do bebé morto na Síria. O facto de todos saberem que um vídeo de um grupo de jovens a agredir um indivíduo será visto milhões de vezes, não o torna publicável nos órgãos de comunicação social. 

Aliás, como todos os jornalistas sabem, ou deveriam saber, se esse vídeo foi colocado por um adolescente teve o objetivo de ser visto como uma espécie de troféu. Ao ser visto na televisão, falado nos jornais, julga-se o maior e ganha ânimo para repetir a dose.

Um pouco como a FIFA e UEFA que têm estabelecido com as televisões a regra que as impede de mostrar as imagens das invasões de campo. Afinal, quem corre nu por um campo de futebol pretende apenas uma coisa: os tais minutos de fama (que não chegam a 15).

Feito este esclarecimento prévio, o óbvio! Conteúdo pode ser tudo, mesmo não sendo nada. Conteúdo pode ser um vídeo de um gatinho a lamber o próprio traseiro, ao mesmo tempo que arregala os olhos, ou um qualquer texto, mesmo que bem esgalhado, sobre qualquer assunto.

Notícia, é algo que deve estar restrito aos jornalistas, aos meios de comunicação social regulados e reconhecidos para o efeito. Obedece a regras deontológicas e de escrita e apenas existe para trazer ao público algo de novo, credível, trabalhado por profissionais.

A narração de uma notícia de género jornalístico deve ser feita com exatidão, objetividade e imparcialidade. Deve ter na sua base a veracidade dos factos, a clareza da linguagem e a objetividade do seu conteúdo.

Há lugar para ambos os modelos e podem mesmo conviver, no mesmo meio. A confusão existe e tem vindo a agravar-se. A distinção podia ficar por aqui, pela rama, mas este texto precisa de ir mais fundo. Até porque é importante separar conteúdo de qualidade do chamado conteúdo viral.

No meio da procura de uma solução para a viabilidade dos jornais e jornalistas, explodiu em 2014, no que respeita ao digital, o Content Marketing. Um monstro, dirão alguns, uma oportunidade de negócio, quando bem feita, defendem outros, e que foi, nos últimos dois anos a tábua de salvação de muitos meios para a perda do investimento publicitário tradicional desviado para o Google e Facebook.

Saber mais sobre este tema aqui.

A deontologia

Na altura em que escrevi este artigo, foi emitida uma nota do Sindicato dos Jornalistas a fazer um alerta com o seguinte título: “Nota do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas sobre publicidade e permeabilidade do jornalismo a conteúdos comerciais”.

Sinceramente, desconheço se o Sindicato já discutiu alguma vez o tema do espaço de media ocupado por sites que mais nada fazem do que copiar o trabalho dos verdadeiros meios de comunicação social mas que, por terem melhores estratégias de comunicação e marketing, mostram bons números e acabam por desviar investimento publicitário.

O resultado é conhecido por todos os que vivem do negócio. O bolo publicitário é curto e quantos mais houver, menos cabe a cada um. E, como será fácil de calcular, se um meio que nada ou pouco investe para produzir uma notícia, optando pelo “picanço” de quem gasta na produção, consegue ganhar dinheiro com este conteúdo, com esta “notícia”, o meio original ganha menos.

Nas discussões que tenho sobre isto há sempre quem realce o óbvio: esses meios têm o mérito de fazer melhor divulgação, sabem usar melhor as redes sociais, etc. Claro, e eu respondo, e quando os meios originais, aqueles que sabem como produzir esse conteúdo, fecharem as portas? Onde vão os cábulas arranjar notícias para copiar? 

Hoje em dia, ser jornalista é uma profissão com pouco mérito, atacada por quem lê.

A nota do Sindicato, é pouco clara em relação ao caso apresentado mas, depois de recordar a Lei de Imprensa, termina com a seguinte afirmação: “Mais, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas alerta os jornalistas em geral para uma realidade que se tem consolidado nos órgãos de comunicação social que é o facto de haver contaminação de conteúdos e espaços jornalísticos por conteúdos publicitários ou comerciais”.

Deduzo que, mediante o que se tem visto, da maior aposta dos anunciantes em conteúdo, com prejuízo da publicidade tradicional, que o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas se refira ao content marketing. Que, recordo, tem sido a tábua de salvação de muitas redações. E pergunto, que medidas toma o Sindicato para tentar salvar os media?

A título de esclarecimento, a questão seguiu para o Sindicato, e até hoje aguardo uma resposta.

O papel dos leitores e anunciantes

Os leitores não são inocentes neste processo. Os leitores são uma parte importante na construção de um jornalismo independente e sério.

No entanto, os leitores são, pegando na ideia da história, os heróis, mas também os vilões. Ao recusarem pagar para ler notícias, aceitam tudo o que lhes entra pelas redes sociais, tomam como bom o conteúdo apresentado por sites com nomes desconhecidos e deixam de seguir e dar o merecido valor aos jornais com nome, com credibilidade.

Depois, colocam todos os jornalistas no mesmo saco, criticando, muitas vezes de forma ofensiva, toda uma classe profissional. Por isso, hoje em dia, ser jornalista é uma profissão com pouco mérito, atacada por quem lê.

Serão poucos os que percebem que quanto mais lerem, de forma gratuita, criticarem os espaços de publicidade, usarem os tais bloqueadores de publicidade, cada vez irão ter menos qualidade, menos imprensa livre, menos Democracia. Será que os leitores estão dispostos a pagar por conteúdo de qualidade?

Porque, afinal, os meios de comunicação social são um negócio e precisam de encontrar formas de ganhar dinheiro para pagar salário aos jornalistas e outros profissionais (fotojornalistas, paginadores, designers, técnicos…) essenciais para que as notícias cheguem com qualidade aos leitores.

Já o tenho dito mas creio que vale a pena reforçar: quando lêem uma notícia, tal como lêem um livro ou ouvem uma música, sem pagar nada por ela, alguma vez pensam como os autores ganham dinheiro? Pensem nas vossas profissões, não acham justo ser remunerados pelo vosso trabalho?

Quanto aos anunciantes, mais do que pageviews, números que pouco ou nada dizem sobre a qualidade de um conteúdo, de uma notícia, já se começa a ver uma mudança. Os responsáveis pelos departamentos de marketing também são consumidores de notícias e, finalmente, começam a perceber que talvez seja melhor associarem-se a um jornalismo de qualidade.

Mesmo ao nível dos blogues, mais tarde ou mais cedo, independentemente do volume de tráfego, aqueles que apresentarem conteúdo sem valor, sem qualidade, serão descartados.

A decadência

Como jornalista, e com uma aposta na Internet nos últimos 10 anos de profissão, custa-me ler os comentários das pessoas que ofendem, descredibilizam e colocam a profissão de jornalista num nível abaixo de lixo.

No entanto, reforço, seria bom que essas pessoas percebessem que a grande parte da responsabilidade pelo estado da profissão de jornalista é dos próprios leitores/consumidores de notícias. Ao privilegiarem “os Buzzfeed da vida” e assumirem estes meios como órgãos de comunicação social, estão a contribuir para o encerramento das redações a sério, para o despedimento de jornalistas seniores e contratação de pessoas que nada mais fazem do que “picar” notícias.

Pessoas que publicam erros (e não falo apenas de erros ortográficos, muitas vezes existentes pela falta de um par de olhos que leia e corrija), mais do que na gramática, dão pontapés na deontologia. Mas, como já ouvi da boca de alguns dos mais altos responsáveis dos media em Portugal, “sabem mexer bem nas redes sociais”.

Nas notícias é um pouco como educar um filho, não é dar tudo o que os leitores pedem, fazer todas as vontades que define o melhor para as novas gerações. Por vezes, temos de lhes dar aquilo que precisam.

Por outro lado, a responsabilidade dos jornalistas, dos próprios OCS que através de citações, de ir atrás, sem confirmar informação, têm dado projeção a sites, blogues, projetos que fogem às regras de um OCS credível.

Este é um tema que me apaixona, por razões óbvias, e poderia escrever sobre ele horas sem fim. Mas, para terminar, focando no tema que deu início a este texto, o Sindicato, tal como o jornalismo em geral, deveria adaptar-se a esta nova realidade que é a internet.

Mais vale esclarecer as coisas com os leitores, deixar claro que há notícias e conteúdo e que pode até haver uma marca com interesse em divulgar determinado conteúdo, mas assegurando sempre a separação, de forma clara, das notícias e o respeito pela deontologia.

E, já agora, lanço mais uma pergunta: se choca assim tanto aos leitores o chamado jornalismo sensacionalista, porque será que aquilo que se torna viral, visto por milhões, é o conteúdo voyeurista, violento?

Afinal, todos defendem a RTP2, mas ninguém vê. Todos criticam os programas como o “Big Brother” mas é o que mais se ouve comentar nos cafés.

Última nota sobre Nice

Estava de férias quando ocorreu o “atentado” de Nice, no verão de 2016. Vi, incrédulo, as mesmas imagens em quase todos os canais por onde fiz zapping no momento em que as televisões estavam todas a emitir em direto. Não foi apenas na CMTV que vi imagens de sangue, de corpos estropiados, em direto, sem filtros.

Isto acontece pelo tal frenesim em que vivemos, pelos números das audiências. Mais uma vez, cabe aos leitores escolherem o que querem ver e, até agora, todos vêem o lhes passa no Facebook, clicam em imagens, em títulos apelativos, dão o tal clique a sites que ninguém conhece. Partilham, ajudam o algoritmo do Facebook a tornar o “conteúdo” viral.

E isto leva a uma outra questão de fundo: devem os jornais e jornalistas oferecer “aquilo que os leitores querem ver”, o tal conteúdo voyeurista, violento, ou assumir um papel responsável, assente em critérios de qualidade, na deontologia, e oferecer aquilo que os leitores precisam?

É um pouco como educar um filho, não é dar tudo o que pedem, fazer todas as vontades que define o melhor para as novas gerações. Por vezes, temos de lhes dar aquilo que precisam.

Só quando o fizerem se evitam situações como as relatadas durante o atentado em Nice ou se elimina o caos que está a acontecer com a eleição de Donald Trump onde se está a desviar a discussão para níveis absurdos, de guerra aberta dos media com a presidência norte-americana.

Trump foi eleito pelos americanos graças ao sistema democrático em vigor, tal como António Costa governa em Portugal. É preciso deixar governar mantendo os jornais e jornalistas a missão que lhes compete: um olhar atento, crítico e factual. Sempre em defesa da verdade e democracia.

Esta declaração de guerra apenas dá mais força a qualquer líder, podendo mesmo ajudá-lo a conquistar um nível de ditador. Para um jornalista, para um projeto isento e independente, não há esquerda, centro ou direita.

Cada um terá as suas convicções mas é preciso deixá-las de fora quando se trata de escrever notícias, de defender a democracia.