O saudoso jornal O Século era pródigo em relatos sobre casos de bigamia envolvendo cidadãos portugueses. No artigo desta semana, vamos recordar algumas dessas notícias.
A bigamia foi sempre crime em Portugal. Apenas as penalizações previstas no Código Penal foram sofrendo alterações com o correr dos anos. Além de um delito criminal, estar casado com duas pessoas ao mesmo tempo era também (ainda o é?) considerado um atentado à moral. Por isso, a denúncia desses casos na imprensa funcionava como um meio de condenação pública do(s) perpetrador(es) e de aviso para quem quisesse cometer semelhante crime.
Muitas vezes, as esposas não sabiam da existência uma da outra. Manter os dois casamentos em simultâneo obrigava a uma ginástica que os tempos prévios aos telemóveis, Internet, desmaterialização dos documentos e cruzamento de dados facilitava. Mesmo assim, acabavam desmascarados.
Recuemos ao ano de 1903, ainda em plena monarquia constitucional. Em setembro desse ano, soube-se que Francisco Maria Cidreira, natural da freguesia de Sambade, concelho de Alfândega da Fé, tinha cometido bigamia. Numa altura em que ainda estava casado com Felicidade de Jesus, com quem contraíra matrimónio em Setúbal, decidiu unir-se a Gracinda da Conceição, uma jovem de 19 anos natural de Mirandela. O logro foi descoberto, mas Francisco Cidreira conseguiu escapar às mãos da justiça.
Menos sorte teve o marinheiro Adriano Pereira, que três anos mais tarde foi parar à prisão do quartel da Armada em Alcântara (Lisboa) pela prática do mesmo crime. Este “perigoso D. Juan”, como o apelidou O Século, era casado com Catarina de Jesus Pereira, natural da Ericeira, mas isso “não o impedia de se entregar frequentemente a digressões amorosas, adquirindo dentro em pouco fama de conquistador emérito”.
Quando o vapor Lidador, no qual era o despenseiro, atracou em Viana do Castelo sob os comandos do primeiro tenente Tomás Júdice Biker, o nosso D. Juan, na altura com 34 anos de idade, não perdeu a oportunidade de se dar a conhecer às belas moças daquela cidade minhota. Uma delas foi Maria Pires de Freitas, de 18 anos, filha de Alexandre Pires de Freitas e de Ana Freitas, proprietários de uma padaria. Adriano Pereira começou a cortejá-la, de tal forma e tão assiduamente, que o casamento entre ambos chegou a ser combinado.
Não contava, porém, o marinheiro que alguém avisaria a legítima esposa dos seus planos. Catarina de Jesus Pereira, que tinha ficado a viver em Lisboa, logo escreveu à filha do padeiro (que todos conheciam por Micas) alertando-a de que Adriano era casado com ela. Não devia, por isso, fazer caso das suas promessas de amor. Mas Micas não acreditou, tanto mais que o namorado lhe assegurava que tudo aquilo não passava de “uma vil calúnia”, que em breve ele iria esclarecer.
Com amigos como este…
O namoro continuou, pois, firme. Tão firme que Micas apareceu grávida, estando ainda solteira, o que constituía uma desonra para a família. Era preciso apressar o casamento antes que a barriga começasse a crescer. Adriano Pereira concordou, exigindo apenas que o dote da futura esposa fosse… um bom dote, monetariamente falando. Ficou acordado que seria de oito contos, e agendou-se o casamento para o dia 8 de setembro desse ano.
Adriano Pereiro pediu, então, à Armada licença para se casar (não dissera que era casado quando assentou praça), e rumou a Lisboa para tratar da papelada: a certidão de nascimento e o documento comprovativo de que era solteiro. Munidos dos dois documentos, voltou a Viana do Castelo e casou com Micas na data combinada. Tudo parecia correr bem ao D. Juan português, que não contava com a traição de um amigo.
Ao copo de água assistiu, perplexo, um marinheiro da lancha Infante D. Manuel, que sabia ser Armando Pereira já casado. Apesar da relação de amizade que mantinham, não quis pactuar com o crime. Telegrafou de imediato à primeira mulher do marinheiro contando-lhe o que tinha sucedido, sem nada dizer ao amigo.
Cerca de uma semana depois, Adriano Pereira regressou à casa que partilhava com Catarina de Jesus Pereira e os três filhos (duas raparigas menores e um rapaz de dois meses), não desconfiando que ela sabia do seu segundo matrimónio. Mas a mulher, que contava na altura 30 anos de idade, tinha já apresentado queixa no Arsenal da Marinha, e Adriano Pereira foi de imediato detido.
Presente ao juízo de instrução criminal uma semana depois, confessou o crime de que estava acusado. Foi transferido para Viana do Castelo, comarca onde o delito tinha sido cometido, para ser julgado.
No início de Outubro de 1919, um novo caso de bigamia saltou para as páginas do jornal. Raúl dos Santos, um jovem natural de Tábua, mas residente em Lisboa, enamorou-se de Maria de Jesus Palma e acabou por casar com ela no Registo Civil em 1918. Dessa união, nasceu um menino, que tinha quatro meses à data dos factos aqui narrados. Tudo corria bem até ao dia em que surge na vida do casal Maria do Céu.
A mulher, residente em Currelos, no concelho de Carregal do Sal, reivindicava ser casada pela Igreja com Raúl dos Santos, com quem tinha tido três filhos (um dos quais já falecido). No Governo Civil, apresentou os documentos que comprovavam o matrimónio. O homem, que trabalhava na padaria da Nova Companhia Nacional de Moagem, depressa se apressou a acusá-la de ser uma impostora, “pois nunca a havia conhecido como esposa”. Mas tão seguro estava do que dizia, ou não, que decidiu desaparecer, obrigando a Polícia a dar-lhe caça.