Na Lisboa do início do século XX, foram detidos vários falsos pobres que andavam pelas ruas a pedir esmola apesar de serem detentores de vasta fortuna. Esta semana, contamos a história de dois deles.

No início do século XX, era frequente a polícia administrativa identificar falsos mendigos durante as rusgas que realizava em Lisboa. Tratavam-se de pessoas que apesar de detentoras de fortuna se dedicavam a pedir esmola na via pública e beneficiavam dos serviços das associações de beneficência. Eram o que a imprensa apelidava de mendigos capitalistas, que se socorriam dos mais diversos expedientes para apelar ao “altruísmo dos transeuntes”: exibiam “um aleijão falso”, ou “uma deformidade adquirida propositadamente para esse efeito”, ou “um grupo de criancinhas de empréstimo, doridas, chorosas, como se as enlutasse a mais negra orfandade e a mais profunda miséria”, denunciava O Século de 18 de Junho de 1903. Hoje, com a ajuda deste jornal diário, revisitamos alguns destes casos registados no ano de 1903.

José Pereira, natural da Amora, no concelho do Seixal, tinha 75 anos de idade quando foi detido no dia 17 de Fevereiro numa das ruas da Baixa lisboeta “por andar a estender a mão à caridade pública, infringindo os regulamentos policiais”. Levado para os calabouços do Governo Civil de Lisboa, na Rua do Capelo, foi sujeito a uma revista, durante a qual lhe apreenderam “uns míseros cobres”, “um pau curto a que se apoiava, devido à sua avançada idade e um guarda-chuva bastante usado, coberto por um forro de alpaca, remendado em diversos pontos”. Nada, portanto, que despertasse qualquer suspeita.

Um dia depois, estando a chover torrencialmente, o cabo Lourenço ofereceu, aos colegas que estavam de saída do emprego, chapéus-de-chuva que tinham sido confiscados aos presos, entre os quais o de José Pereira. Ao abri-lo, caiu de dentro um “rolo de papel de pequenas dimensões” que continha “a quantia de 67$500 réis em notas de 5$000 e 2$500”. Interrogado, José Pereira admitiu que aquele “peculiosinho” lhe pertencia.

Mais tarde, soube-se que durante vários anos, José Pereira tinha sido proprietário de uma padaria do Seixal. Era ainda proprietário de algumas terras, devido às quais se encontrava em litígio com a mulher (da qual estava separado e de quem tinha um filho) por causa de uma hipoteca. 

De uma avareza extrema

Dois dias depois da detenção de Manuel Pereira, foi preso Manuel José de Lima, de 58 anos de idade, natural de Canedo, na freguesia de Refoios, concelho de Ponte de Lima. Durante o inverno, este falso mendigo vivia num quarto arrendado na Vila Santo António, à Junqueira, pelo qual pagava 1$500 réis mensais. Andava pelas ruas da cidade a pedir esmola e ia buscar o jantar todos os dias, pelas 15.30 horas, ao colégio de Campolide, onde funcionava o Asilo das Irmãzinhas. O seu ar de “avarento sujo” nunca agradou aos restantes pedintes, que um dia o denunciaram à Polícia por constar que Manuel José de Lima era, afinal, rico.

Levado para a esquadra de Campolide, foi revistado, tendo a Polícia encontrado na sua posse 103$025 réis “em metal sonante” e um livro de apontamentos no qual anotava os vários títulos de acções de que era detentor. Tinha também “um recibo do Banco de Portugal, em que se declara que todos estes títulos estão depositados naquela casa bancária, dentro de um canudo de folha, fechado com um cadeado”.

Interrogado, Manuel José de Lima contou o seu percurso de vida. Tinha-se mudado para Lisboa em 1870. Daqui, partiu para o Rio de Janeiro, no Brasil, onde viveu 10 anos e onde “por lá arranjou algum dinheiro”. De regresso à capital portuguesa, trabalhou como criado de servir em várias “boas casas, sendo sempre muito económico”.

Confessou que além do dinheiro e dos títulos de acções, era proprietário de umas terras em Ponte de Lima, para onde se mudava no verão. Tem duas irmãs e um irmão, todos casados. As irmãos eram “remediadas”; o irmão, “muito rico”. Apesar de toda a riqueza, admitiu ter sido “sempre de uma avareza extrema”.

Manuel José de Lima foi depois observador por Carlos Santos e Simões Carneiro, subdelegados de Saúde, que o deram apto para o trabalho. Foi, pois, presente ao juiz de instrução criminal por “andar esmolando sem precisar”. Agostinho Barbosa Sotto Mayor, juiz auxiliar de instrução criminal, condenou-o a 25 dias de prisão e ordenou que lhe fossem restituídos o dinheiro e os valores apreendidos aquando da detenção.

O mendigo capitalista foi então encaminhado para a cadeia do Limoeiro, mas não se conformou com as condições de alojamento que lhe foram oferecidas. Por isso, pagou 2$640 réis para ter um quarto só para si e comprou uma cama por 5$000 réis. Cumprida a pena e recuperados os seus bens, decidiu mudar-se para o Porto.