Bento Guilherme Simões ficou famoso graças aos palitos e biscoitos de Oeiras, que confeccionou durante muitos anos. Morreu na miséria, em Abril de 1910, apesar de guardar em casa uma vasta fortuna.
Foi uma das figuras mais carismáticas do concelho de Oeiras. Bento Guilherme Simões, mais conhecido por Canarim, ganhou fama graças à confecção dos palitos e biscoitos de Oeiras, que faziam a delícia de miúdos e graúdos, incluindo os “mais gulosos fidalguinhos da corte de D. Maria II e de D. Vedro V”. A ele se deve também a invenção “de uma apetitosa marmelada preta”, recordava O Século na edição de 20 de Abril de 1910. Canarim morreu em Abril de 1910, com cerca de 80 anos de idade, deixando todos quantos o conheciam bastantes consternados. Foi sepultado no cemitério do Alto da Figuerinha, em Oeiras.
Ainda moço, Canarim casara com Inês Alves da Cunha, filha do antigo morgado de Oeiras, com quem tivera um filho, Marcolino. Graças ao negócio dos doces, a família tivera uma vida abastada. Até cerca de 15 anos antes da sua morte, quando, numa bela manhã, ao entrar na sua loja, Bento Guilherme Simões “ficou surpreso ao ver a porta atada nas argolas com uma forte corda e o soalho coberto por montes de terra e, espalhadas, aqui e ali, diferentes plantas e ramagens de ciprestes, tendo ao centro uma caveira cercada por um grande número de ossos humanos”. Refeito da surpresa inicial, apressou-se a chamar as autoridades, que ordenaram a retirada dos despojos humanos para o cemitério da vila.
Uns meses mais tarde, quando o episódio da caveira parecia já estar esquecido, Canarim recebeu uma carta anónima ameaçando a sua família de morte caso ele não deixasse na soleira da janela, numa determinada noite, um envelope com 30 libras em ouro. De tanto pensar no assunto, o doceiro acabou por enlouquecer e fechar a loja pouco tempo depois. Mas o destino reservava-lhe mais surpresas desagradáveis.
Um dia, apareceram-lhe à porta duas mulheres desconhecidas que o convenceram a deixá-las benzer a casa de modo a afugentarem o diabo, “que ali entrara e não deixava o seu dono sair da cepa torta”. Por arte ou feitiço, depois de abandonarem o lar, Canarim descobriu que tinham desaparecido as suas jóias (de entre as quais cordões, anéis e gargantilhas de ouro).
A loucura do antigo doceiro “avolumou-se” após tamanha desgraça. Receando novo furto, juntou a fortuna que lhe restava (nove contos de réis), correu até à praia e enterrou-a na areia. Mas no dia seguinte, quando lá regressou, não encontrou nada. Fizeram-se várias escavações no areal nos dias seguintes, mas nem sinal do dinheiro.
A partir daí, “nunca mais o infortunado Canarim teve um átomo sequer de juízo”. A família, que até então vivera desafogadamente, passou a sustentar-se “dos restos dos ranchos dos sargentos aquartelados nas fortalezas próximas, dormindo no chão, ao lado do antigo balcão da loja”. A mulher nunca mais saiu de casa, e Bento Guilherme Simões era visto várias vezes na praia à procura da fortuna perdida.
O baú e a cómoda misteriosas
O funeral de Canarim foi “modestíssimo” e contou com a presença da “velha guarda da vila de Oeiras”. Mas nem depois de morto e enterrado, o antigo doceiro teve descanso. Ainda nem o corpo arrefecera, e já na vila o povo falava de um misterioso baú secular e de uma cómoda antiquíssima onde estariam fechados, há muitos anos, “grandes valores”.
Para desvendar o mistério de vez, a família decidiu abrir os dois móveis na frente de “um punhado de pessoas amigas”. À porta, uma multidão aguardava impacientemente o resultado. No baú encontravam-se “dois belos serviços de jantar e chá, tudo em prata e muito antigo, grande número de toalhas e guardanapos alvíssimos e uma caixa com um chapéu alto que servira no casamento do Canarim e por ele antigamente usado nas grandes solenidades”. Nas gavetas das cómodas estavam “um rico vestido de senhora em seda, muito antigo e de grande valor” e inúmeros objectos valiosos, como bandejas de prata, quadros, leques em marfim e seda.
Como relatava O Século de 21 de Abril de 1910, a abertura dos dois móveis realizou-se “à luz de uma velha candeia de azeite”, “numa casa cheia de teias de aranha”, na qual existia ainda um oratório secular de pau santo, um crucifixo de marfim, uma mesa de casa de jantar de 1800, um canapé e uma cama de ferro construídos no reinado de D. João V, entre outros objectos de grande valor.